segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

CAPÍTULO 3

A brisa doce carregava o odor nocivo da peste, derrubando com calma as folhas de outono.

Desolada, Sophie não temia mais a morte. Pelo contrário, a buscava em cada canto daquela cidade infestada. O cheiro repugnante de urina e carniça estava impregnado nas ruas mórbidas de Paris. Andar por elas era um risco dos miseráveis apenas, que não possuiam outra escolha senão passar ali o resto de seus dias penosos, esperando com esperança a visita da Morte. Sophie não era miserável, porém, se identificava com a desgraça dos que o eram. Assim, decidiu passar o restante de sua curta vida por entre eles, sendo essa sua tentativa de suicídio indecoroso.

Além dos indigentes, passeavam pelas ruas fétidas de Paris os chamados libertinos. Sem terem o que perder, esses bon-vivants arriscavam suas improfícuas vidas pagando barato por indecentes noites com meretrizes, ou festejando a desgraça pelos becos da cidade. Muitos deles eram poetas, poucos possuiam o dom; mas todos recitavam. Quando alcançavam o auge da embriaguez, saíam dos bares aos bandos, montavam com caixotes um palco improvisado e desatavam a gritar rimas.

Eram, naturalmente, detestados pela nata burguesa da sociedade. Aos olhos dos aristocratas, chegavam quase ao nível dos ratos pretos que espalhavam a peste, e que portanto, deveriam ser eliminados sem compaixão. De fato, no princípio, os soldados se divertiam fuzilando o maior número possível de ratos poetas. Mas, aos poucos, preferiram contrariar as ordens do rei, temendo mais a morte do que sua ira, e abandonaram o serviço.
Sabiam que aqueles hereges morreriam logo pela ordem de Deus, afinal, ninguém sobrevivia à peste.

Ninguém, fora nosso ilustre poeta Juan Dios.

Não porque era um homem forte, muito pelo contrário, Juan era miúdo e descarnado. Logo quando nasceu, fora abandonado pela pai desesperado, que o deixara numa ruela qualquer, acreditando que Deus lhe daria um destino melhor do que aquele que ele lhe havia reservado.

Fora resgatado logo em seguida por uma menina que, impressionada pela beleza e perfeição de seu choro, o levara para casa. A rapariga contara à mãe sobre o canto do bebê, que se assemelhava ao mais belo dos poemas. A mãe, apesar de impressionada pela história da filha, não poderia sustentar outra criança, pois já havia parido quinze e adotado outras cinco.

Ela o deixara então para os cuidados do padre, que o aceitara com a benevolência típica de um homem do seu cargo. Porém, sua generosidade fora breve: após apenas 2 anos passados ele renunciara o menino. A razão? Seu inexplicável talento em tudo o que fazia. Mesmo seu choro era talentoso! Aprendera a falar em seu primeiro ano de vida, e em seu segundo, já era capaz de conversar. Ainda mais surpreendente era a sua fala em questão. Ela era dotada de uma poesia extraordinária. No princípio, Juan falava em rimas, despertando a curiosidade do padre. Mas essa curiosidade se transformou logo em terror: ora, o garoto era ou divino ou satânico. E o padre admitiu a segunda suposição, para infortúnio de Juan, que fora deixado à mercê da desgraça das ruas.

Nelas, vagabundeou por um tempo, até ser encontrado por Manoel, o dono de um bar da cidade. Surpreso pela capacidade de comunicação que o rapaz possuia, Manoel decidiu levá-lo a um lugar mais adequado, onde ele poderia ter um futuro promissor: o orfanato. Manoel acreditava que lá Juan faria amigos, seria tratado como um pequeno príncipe, trabalharia seu dom. Infelizmente, ele estava enganado.

O período que Juan passou no orfanato fora o pior de sua longa vida. Obviamente que, em uma casa com quatro quartos para mais de 100 crianças, Juan não poderia ser propriamente tratado com carinho e atenção. Na verdade, fora tratado de maneira oposta. Era espancado ao nascer do Sol, então obrigado a cozinhar e estritamente proibido de pronunciar uma palavra sequer. Suas folhas foram roubadas, assim como suas penas, para que não pudesse exercer o dom da poesia. Quando alcançou os 12 anos, num acesso de raiva insana, assassinou a sangue-frio uma das monitoras e fugiu para longe dali. Seu retorno seria para vingança apenas.

Os anos que se seguiram foram passados nas ruas da cidade. Juan passara três anos caminhando em paralelepípedos sujos, bebendo da água pútrida do rio, comendo ratos imundos, tornando-se imune a qualquer doença que Paris pudesse oferecer. Quando estava à beira da morte por desnutrição, um jovem chamado Miguel foi lhe salvar. Miguel era um libertino, desafiador da morte e amante do perigo. Ao ver Juan, magro, fétido e sem esperanças, decidiu aprensentá-lo ao paraíso meio ao inferno. Decidiu integrá-lo ao bando dos bon-vivants. Decidiu fazer de Juan, um artista. E então, Juan se juntou ao bando de Miguel, encerrando a vida inconstante que costumava levar.


E assim se passaram os anos. Sua infância se restringira à mudanças contínuas, sem nunca passar em uma casa tempo suficiente para chamá-la de lar. Juan nunca provara do doce amor materno, nunca tivera uma família. Sua mente se preenchera de ódio e descrença, até chegar no estágio absoluto da indiferença. Recitava poemas vazios em caixas vazias nas ruas vazias. Aos 15 anos, Juan possuia a desilusão de um homem moribundo.

E fora essa a única razão para sua sobrevivência na infestada Paris: sua deplorável existência indiferente.

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